quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Descrição do dia 1 de Novembro de 1755 por Jacome Ratton

“Entre os acontecimentos extraordinários da minha vida não devo omitir a meus filhos o que passei na ocasião do memorável terramoto de Lisboa, que teve lugar no 1.º de Novembro de 1755, pelas nove horas e meia da manhã; e como fosse dia de Todos os Santos, tinha eu ido à missa à Igreja do Carmo, cujo tecto era de abóbada de pedra, e derrubado matou muito povo que ali se achava, de cujo perigo escapei por ter ido mais cedo, e me achar na dita hora nas águas furtadas das minhas casas, mostrando a um comprador uma partida de papel, que nos tinha vindo avariado, e ali se tinha posto a enxugar. Ao sentir o primeiro abalo me ocorreram muitas reflexões tendentes a salvar a minha vida, e não ficar sepultado debaixo das ruínas da própria casa, ou das vizinhas, se descendo as escadas fugisse para a rua; mas tomei o partido de subir ao telhado, nas vistas de que abatendo a casa eu ficasse sempre superior às ruínas. Já quando eu tomei este expediente era tanta a poeira, que, à maneira do mais denso nevoeiro, impedia a vista, a duas braças de distância; só passados alguns minutos, que a dita poeira se foi dissipando, é que eu pude ver o interior das casas vizinhas, por terem caído as paredes fronteiras, até aos primeiros andares, ficando os telhados apenas sustidos pelas paredes divisórias. Seus habitantes, alguns ainda em camisa, correndo espavoridos de uma a outra parte imprecavam os auxílios do Céu, e dos homens, em seu socorro. À vista desta horrível cena, me resolvi descer as escadas, e fugir para a rua, a fim de buscar alguma parte aonde me julgasse mais seguro. Ao descer as escadas encontrei meus pais, que aflitos me buscavam nas ruínas de um grande pano de chaminé que tinha caído, e debaixo do qual me julgavam sepultado. Foi inexplicável o nosso contentamento quando nos encontrámos; mas eu sem perder tempo lhes pedi que me acompanhassem para o largo mais próximo, que era ao fundo da Rua do Alecrim; e encontrando de passagem D. Maria Castre, nossa vizinha, pouco mais ou menos da minha idade, que também fugia, a tomei pelo braço, e seguimos a Rua dos Remolares por cima de entulhos, e muitos corpos mortos, até à beira-mar, aonde nos julgávamos mais seguros. Pouco depois de ali termos chegado, assim como muita gente, se gritou que o mar vinha saindo furiosamente dos seus limites: facto que presenciámos, e que redobrou o nosso pavor, obrigando-nos a retroceder pelo mesmo caminho, e a procurar, pela Rua de S. Roque, o alto da Cotovia, então obras do Conde de Tarouca, depois Patriarcal, e hoje Erário novo, aonde também vieram ter, por diversos caminhos, meus pais, e os parentes da dita senhora, todos na maior inquietação por não saberem uns dos outros, como aconteceu a imenso povo, que procurou aquele sítio descampado, então terras de pão, desde o alto da Rua de S. Bento até à Travessa de Pombal e Cardais de Jesus, havendo apenas algumas casas na rua que vai desde o Pátio do Tijolo, ou obras do Conde de Soure, até à fábrica da seda, que já existia, assim como também a casa de D. Rodrigo, actualmente Imprensa Régia, e o Convento dos Jesuítas, hoje Colégio dos Nobres. O descampado daquele alto dava lugar a descobrir-se a cidade por todos os lados, a qual, logo que foi noite, apresentou à vista o mais horrível espectáculo das chamas que a devoravam cujo clarão alumiava, como se fosse dia, não só a mesma cidade, mas todos os seus contornos, não se ouvindo senão choros, lamentações, e coros entoando o Bendito, ladainhas, e Miserere. Por fortuna o céu se conservava claro e sereno, e o terreno enxuto; por não ter até então havido chuvas, nem as haver por oito dias mais, o que deu ocasião a fazer cada um os arranjos, que lhe permitiam as circunstâncias.
Na madrugada do dia seguinte me convidou meu pai para o acompanhar às nossas casas, e ver se delas podíamos salvar alguma coisa, principalmente o precioso, livros, e papéis de maior importância. Não foi sem bastante trabalho que nos saímos bem desta empresa; por quanto descendo pela Rua de S. Bento, ainda com poucas casas, atravessámos do Poço dos Negros para o Poço Novo, tomámos a Calçada do Combro, e Rua do Loreto, para descermos ao fundo da Rua do Alecrim, de cujo lugar avistámos já em chamas a propriedade pegada com a nossa casa, restando-nos apenas tempo para tirar os artigos acima ditos, que metemos em um baú, que meu pai por uma banda, e eu por outra trouxemos, por entre chamas em que ardiam as ruas do Alecrim, S. Roque, e S. Pedro de Alcântara, até ao alto da Cotovia, aonde minha mãe nos esperava.





Dali partimos com o baú em uma besta de carga, que por fortuna apareceu, e nos dirigimos a uma quinta de pessoa da nossa amizade, sita na estrada do Lumiar, adiante do Campo Grande, aonde fomos bem recebidos, e alojados no jardim, debaixo de uma barraca feita de lençóis, e alastrada de colchões, sobre os quais dormiam promiscuamente, e sem se despir, tanto a gente da casa, como a de fora; porque ninguém se animava a dormir debaixo de telha. Os hóspedes eram muitos, e o pouco, comer porque todos tinham receio de se demorar na cozinha, que havia pago em comum era mal feito; e houve tanta escassez de pão, que meu pai, e eu fomos com uma besta de ceirão buscar uma carga a Linhá Pastora nas vizinhanças de Barcarena. Naquela quinta nos demorámos somente os dias necessários, para nos refazer do vestuário indispensável, principalmente roupa branca; visto que não foi possível a cada um salvar mais do que aquela que tinha no corpo.”

Recordações de Jacome Ratton,Lisboa, (1.ª edição: Londres, 1813) pág. 30-33
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1 comentário:

Anónimo disse...

viva a la rattoni se no fosse ratoni nos nao erremos nada